sábado, 2 de novembro de 2019

Hikaru

Há alguns meses, fui visitar meu irmão e passei novamente pelo trecho Videira - Rio das Antas - SC; em meados de 2000, fiz esse trajeto diariamente por uma semana, durante os Jogos Escolares de Santa Catarina, integrando a equipe de Xadrez. A delegação de Criciúma ficou alojada em uma escola de Rio das Antas e as disputas ocorreram em Videira. Foi a primeira vez que realmente senti frio: certa manhã, a água das torneiras havia congelado e a vegetação estava coberta de gelo.
Eram quatro jogadores inscritos, mas apenas três jogavam; eu integrava o terceiro tabuleiro, tendo a possibilidade do quarto enxadrista entrar como primeiro tabuleiro e eu ficar no "banco". Curiosamente, o feito que tenho mais orgulho ocorreu na rodada em que eu fiquei de fora, onde nosso técnico aplicou o "golpinho da escalação" contra uma das equipes mais fortes do estado, Chapecó. O plano era surpreender na escalação e nas aberturas.
Nas rodadas anteriores havíamos usado a formação "padrão" comigo no terceiro tabuleiro, a idéia era chegar apenas nós três, os jogadores "titulares"; porém, no último instante, chegaria nosso "boi de piranha", que entraria no primeiro tabuleiro, deslocando o primeiro para o segundo e o segundo para o terceiro tabuleiro. Isso surpreenderia nossos adversários, mas não seria o suficiente, ainda mais com nosso primeiro e segundo tabuleiro jogando as mesmas aberturas: peão do rei de brancas e siciliana de pretas.
Contrastando com o estilo tático deles, eu, mais posicional, abria com o peão da dama de brancas e utilizava a defesa pirc contra o peão do rei; eu deveria, então, ensiná-los essas variantes. Meus colegas logo rejeitaram a idéia, nosso técnico ironizou: "todo mundo sabe que vocês jogam Najdorf" (variante da siciliana popularizada por Kasparov). O impasse acabou quando eu mostrei uma ampla anotação preparada por mim, baseada no Informador mais recente (compilado das partidas mais importantes do mundo).
Passei a noite explicando as principais idéias das minhas especialidades, o que me foi muito gratificante; eu poderia não ser o melhor jogador (até porque era o mais jovem), mas, pelo menos, eu era o mais organizado. A estratégia fora um sucesso e conseguimos o feito inédito de chegar às semi-finais do estadual, deixando para trás, inclusive, a equipe de Florianópolis, que havia nos vencido no regional.

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Hikaru Nakamura nasceu dia nove de dezembro de 1987, em Hirakata, Japão; o pai é japonês, a mãe, norte-americana. Eles se mudaram para os EUA quando Hikaru tinha dois anos, um ano depois, o casal se separou. O padrasto é um enxadrista natural do Sri Lanka, que treinou o jovem que acumula cinco títulos norte-americanos (inclusive o de 2019) e quatro medalhas olímpicas pela equipe dos EUA (ouro em 2016, prata em 2018, bronze em 2006 e 2008).

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Joaquim Hikaru Wagner dos Santos nasceu dia vinte de junho de 2019 em Canoinhas-SC, o pai descende de japoneses, a mãe, de alemães. Joaquim é o nome do pai da avó paterna da mãe, o que demonstra uma influência portuguesa, enquanto o Santos, sobrenome do avô paterno do pai, remete à linhagem africana da família. Para surpresa de todos, possui olhos azuis e pele alva, sendo carinhosamente chamado pelo pai de "polaco".
Dois dias antes de nascer, durante a consulta pré-natal, a obstetra identificou uma circular de cordão; o pai, médico, logo indicou a necessidade de fazer a cesariana, a mãe questionou e a obstetra disse para decidirem em casa, com calma. Combinaram a cirurgia e, na madrugada anterior, começaram as contrações; iria nascer naquele dia, de um jeito ou de outro. Felizmente, deu tempo para retirá-lo via abdominal.
Ao visualizá-lo, a obstetra informou preocupada que realmente ele estava com uma circular; ele nasceu cianótico, sua mãe perguntou assustada porque ele não estava chorando. Sem responder, o pai seguiu junto para a sala de reanimação, onde aguardou uma eternidade até ouvir o seu choro vigoroso. Após o fim da cirurgia, a obstetra entrou na sala e, feliz, disse: "Ainda bem que você a convenceu a fazer a cesárea."
Algumas semanas depois, um tio do pai fez uma visita e disse que a bisavó de Joaquim perdera dois filhos asfixiados pela circular de cordão; uma tia da mãe de Hikaru também passou pela mesma situação, mas a sobrinha só soube depois do parto: "Eu não sabia que era tão perigoso!" A vida é uma batalha antes mesmo de nascermos, foi agradecido aos céus por tudo ter ocorrido bem.

domingo, 10 de junho de 2018

Laços de Família - parte 9


Há cerca de nove anos atrás, ocorreu um episódio engraçado em São Martinho-RS. Fui visitar meus avós e, chegando lá, estacionei atrás da SUV recém comprada de meu pai. Ele havia colado na traseira adesivos de um casal, três meninas e uma cachorra, todos com roupas do Grêmio (por algum tempo, inclusive, usei isso para me vitimizar, afirmando que não fazia mais parte da família). Minha reação imediata, ao me deparar com aquela imagem, foi a de ridicularizar o feito: “Meu Deus, o que é isso?!”
Dias depois, quando fomos embora, meu pai foi carregar o carro e meu avô viu “os gremistas”, disparando com clara revolta: “Como é que pode?! Pegou o carro novinho e já encheu de porcaria!” Instantes depois, ouvi a óbvia conclusão: “Você e seu avô são parecidos em algumas coisas.” De fato, nunca adesivei meus veículos, ao contrário de meu pai e meu irmão; meu avô, ao que tudo indica, seguia a minha filosofia.

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Eu devia ter uns doze anos, quando fui visitar meu tio em seu retorno a Três Passos (ele passou muitos anos trabalhando como funcionário público em Porto Alegre, mas perdera o cargo). Sendo o músico da família, ele tinha um violão DiGiorgia; nessa ocasião, toquei nele e deixei meu tio impressionado: “Pode levar!”. Analisando hoje, vejo que outros primos poderiam ter usufruído do instrumento, mas eu havia sido o escolhido.
Na época, eu tinha uma guitarra, mas o violão era muito melhor. Com ele, fiz aulas por um ano, meu mestre era graduado pela Universidade Federal de Santa Maria (meu tio mais novo fez Odontologia lá, ele dizia que Santa Maria era a cidade da música). Também fiz algumas apresentações na escola com o instrumento antes de entrar em uma banda de hardcore. Qualquer pessoa que me conheça sabe como fazer música é parte importante da minha vida, isso só foi possível porque fui apadrinhado ainda jovem.

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Na época que minha avó adoeceu, em 2014, estive no apartamento de minha prima em Porto Alegre, onde comentei: “O Chicão está bravo comigo”. Ela indagou sem entender, expliquei: “Roubei a mãe a dele.” Eu havia acabado de fazer a transferência dela de Três Passos para a capital, meu tio desde o começo se opusera, embora, conforme minha prima: “Não tinha o que fazer.” Apesar disso, ela concordou que, pelo menos para nosso tio, eu realmente fizera algo terrível.
No dia seguinte, no terraço, tive uma longa conversa com o pai da minha prima, um pouco mais novo que o Chicão. Embora ele tenha se formado em Jornalismo e tenha seguido carreira no rádio, ele fizera dois anos de Psicologia, o que provavelmente favorecia uma análise sobre a personalidade de seu irmão músico. Para ele, em resumo, o Chicão era emoção, sempre agindo conforme o que sentia; por vezes, sofrendo as consequências por sua impulsividade e franqueza. Acredito que, além das seis cordas, também temos isso em comum.

terça-feira, 3 de abril de 2018

Laços de Família - parte 8


Juntamente com o Natal, a Páscoa costumava ser uma época em que a minha família paterna se reunia na casa de meu avô, no noroeste gaúcho. Ano passado, meu pai convidou seus filhos para um almoço na sexta-feira santa em Garopaba; ao amanhecer de sábado, parti em direção a Três Passos. Cheguei à tarde na casa de meu tio que, emocionado, disse que agora iria ao meu casamento, marcado para o final de maio. Outro tio, no telefone com meu avô, também achou notável meu trajeto de 800km para estar ali. 
Depois do churrasco, sentamos ao redor de uma mesa colocada na varanda para um tradicional jogo de pontinho. Perfeitamente lúcido, meu avô participou do carteado, bebendo chope e se divertindo conosco. Lembro que, naquele momento, pensei comigo mesmo que a viagem valera a pena. Apenas um ano depois, parece ser uma lembrança distante; foram tantas mudanças, a sensação é de que se passou uma década desde então. 

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Em julho, recebi uma ligação de meu tio avisando que meu avô havia descoberto um tumor hepático; ele já estava ictérico e debilitado, sendo descartado qualquer forma de tratamento. Era sexta-feira, eu estava me dirigindo para um plantão de 36 horas na UPA; tentei trocar pelo menos as últimas 12 horas, mas como já era esperado, não consegui. Dormi algumas horas na manhã de domingo e à tarde me dirigi a Três Passos, onde meu avô internara. Ao anoitecer, exausto e temendo um trecho sinuoso de mais 150km, parei para descansar em um hotel. De madrugada, meu tio informou o falecimento do patriarca. 
No velório, surgiu a desconfiança de que ele já sabia que estava doente. Sua companheira relatou que sempre o acompanhava nas consultas médicas, exceto nos últimos meses, quando ele pediu para ir sozinho. Imagino que um simples exame de sangue e ultra-som já apontaria o diagnóstico provável, qualquer médico poderia fazer essa avaliação. Meu pai comentou que não faria sentido ele esconder isso, respondi quase sem pensar: “Eu faria o mesmo.” Sem dúvida, se eu descobrisse que iria morrer, esconderia até o último instante. 
Meu primo o havia visitado alguns dias antes e na despedida, notou que ele estava com um olhar triste: “O que o vô está pensando?” “Estou pensando que eu queria ser um beija-flor, para sair voando por aí.” Lembrando depois, no meu casamento, ocorrido dois meses antes, ele estava com um semblante de despedida. Foi a última vez que o vi, em mais um golpe de sorte que a vida me proporcionou. 

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Dois dias depois do enterro, o tio que morava em Três Passos internou com um quadro de AVC. No pátio do hospital, antes de sair do meu carro, ele me confessou, ainda lúcido: “Essa é a primeira vez que eu vou internar.” Ele teve uma piora rápida, evoluindo com hemiplegia e afasia. Meu prognóstico era péssimo, mas o neurologista foi mais otimista; felizmente, eu estava errado. Houve uma melhora progressiva do quadro clínico, superando bastante minhas expectativas. 
Passei a virada de ano com eles, contrariando a tendência de passar no agito do litoral. Uma noite, eu e meu primo estávamos esperando uma pizza na praça e ele me perguntou se eu gostava de Três Passos. Respondi que sim, que ali era um lugar tranquilo. Embora, há alguns anos, ele abominasse a idéia de ficar na região, ele comentou que também gostava da cidade. Para nós, há muitas memórias boas naquele lugar. 

sábado, 19 de agosto de 2017

When I Get Old

A primeira vinda do Descendents ao Brasil coincidiu com meu aniversário ano passado, meu irmão comprou ingressos com meses de antecedência. Ao estacionar o carro em frente ao hotel reservado por ele na capital paulista, vejo Stephen Egerton caminhando em minha direção; penso em aumentar o volume do álbum Somery para que ele me identificasse como fã, mas dessa vez, timidamente, resolvi agir como um hóspede normal e apenas desliguei o carro.
Uma coisa legal dos concertos de rock é que você nunca sabe qual música vai te emocionar mais. Dessa vez, o arrepio principal veio com a sétima música do meu álbum preferido, que marca o retorno de Milo após nove anos afastado: Everything Sucks (1996). What will it be like when I get old? Will I still hop on my bike and ride around town? Will I still want to be someone and not just sit around? I don't want to be like other adults, cause they've already died... 

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Há alguns meses, adicionaram-me em um grupo com colegas da época do colégio, contando com mais de cem integrantes. Dificilmente consigo acompanhar as mensagens, mas um dia perguntaram quem era o gênio que criara o grupo e a resposta que deram foi: "Se foi um gênio, só pode ter sido o Tiaraju." Ao me manifestar, o colega que havia perguntado logo lembrou da minha saudosa mãe, falecida quando eu tinha dez anos. 
Outro colega comentou que lembrara de mim há algumas semanas, perguntando onde eu estava e o que eu fazia. Uma colega, que também se formou em Medicina, recordou de um desafio que nossa professora do primário fazia: "O Tiaraju sempre era o primeiro a achar as palavras no dicionário! #tiarajufacts". Nessa manhã de boas lembranças, comentei o ocorrido com um agente de saúde, que sorriu ao saber das minhas façanhas escolares.
Algumas semanas depois, com o fim do meu contrato de trabalho, o agente de saúde veio agradecer a minha boa vontade em atender os pacientes dali. Segundo ele, não só eu fazia aquilo que me solicitavam como eu ia além, dando como exemplo o dia em que ele pediu uma receita para uma senhora e eu fiz questão de ir até a casa dela para examiná-la. Ele me aconselhou a continuar assim, pois Deus com certeza iria me recompensar. Respondi que Ele já recompensava e ele concluiu: "É verdade, ele deu esse talento que teus amigos de infância lembram até hoje."

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Uma das frases que costumo escutar ao final das consultas é: "Que Deus te abençoe!" Gosto de pensar que esse pedido, repetido ao longo dos anos, surta o efeito desejado e me mantenha sempre em boa ventura. Ao atravessar tempos difíceis, inerentes à condição humana, procuro acreditar que meu caminho deverá ser, de alguma forma, protegido. Nessas horas, o homem de ciência dá lugar ao homem de fé e isso, talvez, seja o meu talento maior.

quarta-feira, 8 de março de 2017

Liberdade

"Rousseau dirá que a felicidade do homem nada tem a ver com o resto da natureza, onde tudo é necessariamente do jeito que é. Na natureza, o vento venta do único jeito que poderia ventar, a maré também, o sapo também, a girafa também, a samambaia também... Mas no caso da vida do homem, a cada passo, ele escolhe, ele delibera, ele decide. A cada passo, ele faz a vida acontecer e decide jogar no lixo tantas outras vidas que escolheu não viver.
Portanto, diz Rousseau, a verdadeira felicidade é quando você acerta na tua escolha. A verdadeira felicidade pressupõe o uso adequado da liberdade, ninguém comemora mitoses e meioses dentro do próprio corpo, porque isso é inapelável, isso acontecerá de qualquer jeito. O homem comemora quando ele acerta tendo podido errar, quando ele triunfa tendo podido fracassar, quando ele ganha tendo podido perder; é aí que ele vibra." Clóvis de Barros Filho https://www.youtube.com/watch?v=q4E8g9L2PK4

Após dois meses sem fazer plantões em uma cidade vizinha, fui convidado pelo novo diretor clínico para retornar meus trabalhos ali; sendo ele um tradicional ortopedista da região, fiquei lisonjeado com o convite, prontamente aceito. Ao comentar isso com meu tio mais novo, cogitei a hipótese da equipe de enfermagem da UPA ter me recomendado e ele concordou com facilidade, como se a boa fama do sobrinho não lhe fosse surpresa alguma.
O caso mais tenso do retorno foi o de um menino de quatro anos que cortara profundamente a sola do pé, de lateral a lateral. Suspeitando de uma lesão tendinosa, entrei em contato com o sobreaviso da Ortopedia que, vendo as imagens pelo celular, rapidamente respondeu que estava a caminho. Após as enfermeiras conseguirem um acesso venoso, perguntei se havia Tramadol; havia, embora não soubessem a concentração das ampolas disponíveis.
Quando uma delas retornou com o medicamento, disse que só tinha a de 100mg/2ml; calculei a dose de cabeça, convicto: "Faz 0,3ml EV, diluído, lentamente." Aos poucos, o paciente foi se acalmando. Enquanto esperava o raio-x, meu colega plantonista apareceu, ficando impressionado com as fotos do corte: "Foi um tubarão?!" Ele explicou que havia ouvido os gritos desesperados do jovem, perguntando em seguida o que eu havia feito de analgesia.
Respondi, ele indagou se subcutâneo e informei que não, havia feito EV, 1mg por quilo. Imagino que a maioria dos médicos teriam receio de administrar um opióide intra-venoso em uma criança de quatro anos, mas era o que a situação demandava. A lição é antiga: durante uma aula prática do internato, o coordenador do curso de Medicina, cirurgião-pediátrico, nos apresentou um caso de tuberculose extra-pulmonar em uma jovem com cerca de 9 anos.
Eram necessários curativos diários em um ferimento profundo na perna, o professor explicou que havia prescrito um analgésico potente e chamou a atenção para a forma mais eficaz de administração: EV. Era preciso ter certeza que o medicamento estava na corrente sanguínea para garantir o alívio dos nossos pacientes. Anos depois, eu usaria o mesmo princípio em uma emergência pediátrica; anos depois, sob todos os riscos, eu triunfaria tendo podido fracassar.

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Outro caso marcante do longo retorno foi o de um senhor de meia-idade que caíra do teto de sua casa, apresentando um trauma na parte lateral do tórax. Ele aguardava respirando com dificuldade na frente do meu consultório, a ausculta pulmonar confirmou o pneumotórax direito; imediatamente encaminhei para a radiografia e, quando o reavaliei, ele já respirava normalmente, sem dor e com o semblante tranquilo. O raio-x estava normal, assim como a ausculta que, agora, indicava os dois pulmões funcionantes.
Um dos princípios que procuro usar na minha prática clínica é a de ser honesto com o paciente, seja na certeza, seja na dúvida: "Você estava com um problema grave, eu teria que ligar para o cirurgião colocar um dreno no seu tórax, você ficaria internado pelo menos três dias. Mas agora, inexplicavelmente, você está curado!" A mulher dele comentou que seu irmão tivera que usar esse dreno e que ela também achava que o mesmo aconteceria com seu marido, visto sua respiração ofegante.
Após liberar o paciente, encontrei o técnico do raio-x e logo lhe perguntei o que ele fizera. Ele riu, concordando que o senhor entrara dispnéico na sala e, após o exame, respirava melhor. "Foi você", acusei; ele se esquivou, culpando a radiação. Mais tarde, relatei para meu colega plantonista o feito do técnico, que acompanhou a conversa achando graça do meu entusiasmo; no fim, ele nos surpreendeu com a confissão: "Pior que teve uma vez em que eu realmente curei um paciente no raio-x."
Tratava-se de um idoso que engolira a prótese dentária, ficando com ela alojada no esôfago. A clínica cirúrgica recomendou o controle radiológico da peça e, durante o segundo exame, o paciente começou a ficar nauseado e expeliu a prótese! Chocado, complementei: "Se antes eu achava que você tinha o dom, agora eu tenho certeza!" Ao final do plantão, quando eu já ia embora, o recepcionista veio passando pela enfermaria e eu lhe informei, apontando para o técnico: "Se um dia você ficar doente, procure esse homem!"

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A teoria espírita nos diz que algumas pessoas possuem uma capacidade inata para a cura, que independe da vontade delas. Um bom exemplo está contido no Novo Testamento:

"Então, uma mulher, enferma com uma perda de sangue há doze anos, que muito sofrera nas mãos de vários médicos e que, tendo gasto todos os seus bens, não recebera nenhum alívio e se encontrava cada vez pior, tendo ouvido falar de Jesus, veio na multidão por trás e tocou as suas vestes, porque ela dizia: 'Se eu puder tocar somente as suas vestes, estarei curada.' No mesmo instante, a fonte do sangue que ela perdia secou e sentiu em seu corpo que estava curada dessa doença.
No mesmo instante, Jesus, conhecendo em si mesmo a virtude que dele saíra, retornou para o meio da multidão e disse: 'Quem tocou minhas vestes?' Seus discípulos lhe responderam: 'A multidão nos comprime de todos os lados e perguntas quem te tocou?' Ele olhava tudo ao seu redor para ver aquela que o tocara.
Essa mulher, que sabia o que se passara com ela, tomada de medo e pavor, veio se lançar aos seus pés e lhe declarou toda a verdade. Jesus lhe disse: 'Minha filha, a tua fé te salvou, vá em paz e seja curada da tua doença.' (São Marcos, cap. V, versículos de 25 e 34)
Essas palavras: 'Conhecendo em si mesmo a virtude que dele saíra', são significativas; elas exprimem o movimento fluídico que se operou de Jesus para a mulher enferma; ambos sentiram a ação que acabara de se produzir. É notável que o efeito não foi provocado por nenhum ato de vontade de Jesus; ele não fez nem magnetização e nem imposição das mãos. A irradiação fluídica normal bastou para operar a cura." A Gênese - Os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo, cap. XV

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Embora as evidências apontem para o técnico radiologista como principal suspeito por operar o milagre do pneumotórax, gosto de pensar que eu tenha tido alguma participação no episódio. Pensando alto, concluo que, mais importante que poder salvar vidas, é escolher estar lá para tal. A verdadeira felicidade pressupõe o uso adequado da liberdade, ninguém comemora mitoses e meioses dentro do próprio corpo, porque isso é inapelável, isso acontecerá de qualquer jeito.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Alegria

"Espinoza vai dar um nome para isso, uma palavra que você usa o tempo inteiro, uma palavra que você conhece e que hoje aprende o significado: alegria. Passagem para um estado mais potente do próprio ser, alegria é a maior distância da morte. Não sei se já aconteceu contigo: do nada, você encontra alguém, alguém que um dia você conheceu, alguém que você não esperava de jeito nenhum encontrar... E você encontra e fica perplexo, fica absolutamente encantado com aquele reencontro e a alegria é indisfarçável, a alegria é soberana..." Clóvis de Barros Filho https://www.youtube.com/watch?v=q4E8g9L2PK4

Certa vez, comentei com minha namorada que, quando eu entrava no meu carro para encontrá-la em sua universidade (distante 130km dali), era como se o hit de Pharrell Willians, Happy, começasse a tocar na minha alma. Era o meu dia de glória em meio a dias de luta (http://tiarajusantos.blogspot.com.br/2014/10/dias-de-luta-dias-de-gloria.html). Logicamente, alguns meses depois, mudei-me para a cidade universitária e aqui permaneço.
Ano passado, ela iniciou uma pós-graduação em Hematologia; um final de semana por mês vamos para Curitiba, quando chegamos no hotel, nossas fichas já estão no balcão esperando as assinaturas. Gosto especialmente da vista para o centro cívico, com seu ar frio e úmido. Ela reclama que nunca fomos ao Jardim Botânico, confesso que minha preferência fica em desfrutar das opções gastronômicas da capital e, no máximo, passear pelo Shopping Barigui. 
Há um mês, começamos a andar de bicicleta nas Gêmeas do Iguaçu. Além do clima agradável, há ciclovias em um relevo predominantemente plano que permite trajetos urbanos longos. É um hobby que felizmente temos em comum. Quando estamos retornando para sua casa, brinco que andar de carro é muito melhor; ainda mais sendo o carro esportivo que ela mesmo escolheu (http://tiarajusantos.blogspot.com.br/2015/09/carros.html).
O surpreendente é que estamos entrando no nosso quarto ano e a música de Pharrell ainda me representa quando dirijo em direção à sua cidade. Assim sendo, ficarmos juntos me é o caminho mais óbvio. Uma história clássica de John Lennon é a de que, na infância, perguntaram o que ele queria ser quando crescesse; ele respondeu que queria ser feliz, foi dito que ele não entedera a pergunta e o gênio finalizou: "Você não entendeu a vida."

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Sofia

(Postado originalmente dia 30/12/2016)

Continuando a palestra de Clóvis de Barros Filho:

"Aristóteles se tornou um subversivo na academia de Platão, Jesus se tornou um subversivo no Judaísmo. Jesus disse coisas que ninguém tinha dito antes e, como grande sábio que era, respondeu à nossa pergunta: o que a vida tem que ter para ser boa? (...) O filé mignon da vida, a vida que, de fato, vale a pena é a vida assumidamente dedicada ao outro. Aquilo que fará de você um vivente feliz é a entrega, é proporcionar, é alavancar, é permitir que o outro viva melhor do que viveria se você não existisse."

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Há alguns meses, como médico em uma unidade básica de saúde, passei a fazer visitas domiciliares a Sofia, uma ilustre sobrevivente da Segunda Grande Guerra. Ucraniana, ela foi levada ainda adolescente para a Alemanha como trabalhadora escrava, provavelmente em 1941, quando iniciou a ocupação nazista de seu país.

"O desejo de Hitler de atacar a União Soviética foi finalmente realizado em 22 de junho de 1941. A invasão foi uma operação grandiosa (...) A quantidade de prisioneiros feita pelos alemães durante a Operação Barba Ruiva foi tão grande que eles não sabiam o que fazer com todos eles (...) Muitos prisioneiros foram usados como trabalhadores escravos nos projetos industriais da Alemanha." Atlas Segunda Guerra Mundial, David Jordan e Andrew Wiest, 2004.

Com uma lucidez impressionante, ela relata que deveria trabalhar sem falhas pois havia o temor de ser enviada para um campo de concentração. Mesmo após o final do conflito, ela permaneceu na Alemanha, onde casou com um ucraniano e teve sua primeira filha. Os alemães lhe diziam uma frase de ódio, que significava: "Fora, estrangeiros!" No entanto, não podiam voltar para a Ucrânia, que, assim como o resto da Europa, estava destruída.
Pelos meus cálculos, em 1949, Sofia e sua família vieram para o Brasil; segundo ela, enganados por falsas promessas de prosperidade. Além de roubados, foram transportados e "despejados" aqui como animais; primeiro conheceu o Rio de Janeiro, depois passou por algumas cidades catarinenses até se fixar no sul do Paraná. Imagino que, pela colonização ucranianana típica daqui, ela tenha se sentido mais próxima de sua terra natal.
Logo no começo, a cuidadora de Sofia comentou que, apesar de sua ampla experiência com atendimentos, jamais conhecera profissionais tão atenciosos como nós. Mês passado, ela ligou para a unidade, pedindo que eu fosse até lá, pois Sofia queria me entregar um presente (uma garrafa de Merlot que seu genro enólogo produzira em Videira-SC). O episódio se tornou notório entre minha equipe e, de fato, não escondo que Sofia é uma cliente especial.
Na semana seguinte, fui conhecer sua filha primogênita (que viera do Rio de Janeiro para uma breve visita). Ela contou uma história curiosa: mesmo tendo nascido na Alemanha, não tinha direito à cidadania, pois precisaria ser filha de alemães. Por muitos anos foi uma apátrida, até conseguir a cidadania italiana, por causa de seu marido, brasileiro com dupla cidadania.
De forma análoga, imagino que em breve serei cidadão alemão, pois pretendo me casar com uma Wagner. Quando soube, meu pai logo reconheceu o sobrenome germânico, lembrando que se tratava do compositor preferido de Hitler. Outro detalhe histórico é que ela é parente de Alfredo Wagner, homenageado da cidade homônima encravada na serra catarinense.
Sofia toma medicamentos diários para dores pelo corpo, mas quando estou lá, aparentemente ela permanece assintomática, como se a minha presença aliviasse momentaneamente seu sofrimento. Gosto de pensar que existe uma certa compensação do destino nesse encontro entre a sobrevivente aliada e o descendente de samurais, natural de uma cidade de colonização italiana e futuro cidadão alemão.